domingo, 30 de julho de 2017

A idade da Terra



Acreditar que o universo seja bem mais antigo do que a vida em nosso planeta não tem que ver com o pensamento evolucionista, mas com as evidências bíblicas

Mas isso não é bíblico!”, exclamou o aluno. Aquilo era demais para mim. Ali estava eu, bacharel em Teologia e mestre em Ciências da Religião, pastor pertencente a uma família de quatro gerações de ministros e professor de religião para turmas de ensino superior, sendo acusado publicamente de manter uma posição equivocada. “Quanta ousadia!”, pensei. “Eles não podem estar certos! Ou podem?”

A razão de tanta polêmica foi a pergunta da prova que eu havia acabado de aplicar: “Quando Deus criou a água?”. Eu esperava que eles tivessem respondido que foi “no segundo dia da semana da criação”. No entanto, quase a metade da turma argumentou que havia sido “antes da semana da criação”. Tomando como base aquilo que aprendi sobre a origem da Terra na minha infância, risquei a resposta e atribui nota zero para aquele aluno. Porém, fui surpreendido pela reação dos demais estudantes quando receberam a avaliação. Eu estava convicto de minha posição, mas, diante de tantos questionamentos, resolvi recolher as provas e reavaliar a questão.

Nos dias seguintes, dediquei-me inteiramente a pesquisar sobre esse assunto. Aceitar que a matéria existia antes da semana da criação soava para mim um flerte com o evolucionismo, uma posição para a qual eu não estava disposto a dar a mínima consideração. Mas aquela reação inesperada do grupo fez com que eu considerasse outra interpretação possível.

O texto de Gênesis 1:2 afirma que “o Espírito de Deus pairava por sobre as águas”, dando a entender que, antes do primeiro dia da criação, havia água. Portanto, o que foi exatamente que Deus criou na semana da criação? Poderia Ele ter criado o Universo antes de formar a Terra e preenchê-la de seres viventes? Creio que minha dúvida seja a de muitos adventistas.

Por serem criacionistas, os adventistas defendem arduamente que o relato da criação é histórico e descreve o que ocorreu numa semana literal de sete dias com 24 horas, há aproximadamente 10 mil anos. Para muitos, não apenas a Terra, mas todo o Universo foi criado durante aquela semana. Essa posição, no entanto, enfrenta sérias dificuldades quando comparada com a ciência e a própria Bíblia, como veremos neste artigo.

Evidências na Bíblia

A interpretação de que a vida na Terra foi criada num momento distinto e posterior à criação do Universo e do próprio planeta parece estar em harmonia com uma das crenças mais importantes do adventismo: o grande conflito entre Cristo e Satanás. Esse embate surgiu no Céu, com a rebelião de Lúcifer e seus anjos. Conforme afirmaram vários teólogos adventistas, o grande conflito serve de moldura para interpretarmos as Escrituras. É a chave hermenêutica para a compreensão da Bíblia.

Embora o Gênesis tenha como ponto de partida de sua narrativa a criação da Terra e da humanidade, fica evidente, mais adiante nas Escrituras, que Adão e Eva não foram os primeiros seres criados no Universo. Satanás, por exemplo, é mencionado no relato da tentação (Gn 3:1; Ap 12:9) sem que haja qualquer referência à sua origem, sugerindo que ele já existia naquela semana inicial. O livro de Ezequiel descreve Satanás no jardim do Éden como coberto de pedras preciosas (Ez 28:13).

O capítulo 14 de Isaías, por sua vez, completa esse quadro nos informando que, quando Lúcifer se rebelou contra Deus, alguns elementos cósmicos já existiam: ele desejava subir “acima das estrelas de Deus” (v. 13) e “acima das mais altas nuvens” (v. 14). O texto também menciona o “monte da congregação” (v. 13), dando a entender um local físico em que se congregam seres criados. Na Bíblia, a frequente menção aos anjos e espíritos caídos é um lembrete de que não estamos a sós nesta vasta criação. Essas evidências nos indicam que o Universo, com seus elementos básicos (tempo, matéria e vida), já existiam antes da semana da criação.

O livro de Jó também aponta nessa direção. Ali encontramos dois textos que claramente sugerem a existência de outros seres criados além de nós. Em primeiro lugar, quando Satanás compareceu perante o Senhor (Jó 1:6, 7), o texto faz referência a outros “filhos de Deus”, dando a entender que nosso planeta não era o único habitado. Embora seja possível supor que esses seres vieram à existência depois da criação da Terra, Jó 38:4 a 7 volta a mencionar os “filhos de Deus” cantando e se rejubilando enquanto Deus “lançava os fundamentos da Terra”. Essa passagem deixa claro que, ao formar o planeta Terra, Deus era observado por uma plateia de admiradores. Crer que todo o Universo passou a existir a partir da semana da criação traz sérias dificuldades para o intérprete desses textos.

Além do mais, o próprio relato de Gênesis 1:1-3 deixa claro que, quando Deus criou a luz, no primeiro dia, o Espírito de Deus “pairava por sobre as águas”. O teólogo William H. Shea, ao comentar essa passagem no Tratado de Teologia Adventista do Sétimo Dia, reconhece “o fato de que a Terra inerte se achava em um estado aquoso antes dos acontecimentos da semana da criação” (p. 469).

Outro argumento interessante levantado pelo teólogo John Hartley, em seu comentário Gênesis, é que “o padrão repetitivo empregado para cada dia da criação nos mostra que os versos 1 e 2 não fazem parte do primeiro dia da criação (v. 3-5)”. Cada período é introduzido com a expressão “e disse Deus”, e concluído com “houve tarde e a manhã: o dia [x]”. Portanto, conclui Hartley, “esses dois primeiros versos [Gn 1:1, 2] se distinguem do restante do relato daquilo que Deus fez no primeiro dia da criação” (p. 41). Sendo assim, embora os eventos ocorridos na semana da criação tenham acontecido entre 6 e 10 mil anos, a Bíblia fornece várias evidências de que o Universo, assim como a própria Terra em seu estado físico, é muito mais antigo que isso.

Evidências nas estrelas

Quando nos voltamos para a ciência, percebemos que a astronomia também aponta para um Universo mais antigo que poucos milhares de anos. Ao lermos sobre estrelas e galáxias distantes, somos informados de que elas se encontram a “milhões de anos-luz” de nós, uma medida popularmente empregada para facilitar nossa compreensão das vastas distâncias que nos separam dos elementos cósmicos. Um ano-luz equivale à distância que a luz de uma estrela percorre durante um ano: cerca de 9,5 trilhões de quilômetros. Isso significa, por exemplo, que a Grande Nuvem de Magalhães, uma galáxia anã que está a aproximadamente 170 mil anos-luz da Terra, existe há pelo menos 170 mil anos. Esse cálculo é um desafio para os que defendem a interpretação de que o Universo é jovem.


O relato da criação apresenta a ação de Deus em dois estágios: primeiro, ele criou a matéria e, depois, a vida. Créditos da imagem: Fotolia
Alguns argumentam que Deus poderia ter criado o Universo em um tempo recente, mas lhe dado a aparência de antigo. Seria como no caso de Adão e Eva, que, apesar de recém-criados, saíram adultos das mãos do Criador. Dessa forma, defende esse grupo, o Universo poderia ser cronologicamente jovem, porém esteticamente antigo.

Contudo, essa linha de interpretação deixa de considerar que as galáxias, estrelas e nebulosas que observamos não são estáticas, mas estão em constante movimentação e passam por processos que podem ser acompanhados pelos nossos telescópios. Em 24 de fevereiro de 1987, por exemplo, o astrônomo Ian Shelton, da Universidade de Toronto, no Canadá, estava observando a Grande Nuvem de Magalhães quando identificou uma supernova. Ou seja, a explosão de uma estrela cuja luminosidade pode ultrapassar a de sua própria galáxia. Devido à sua distância, a luz dessa supernova teria começado sua jornada há 170 mil anos, sendo capturada por nossos telescópios somente em 1987.

Em fevereiro, representantes do projeto LIGO (Observatório de Ondas Gravitacionais por Interferômetro Laser) anunciaram a descoberta de ondas gravitacionais originadas a 1,3 bilhão de anos-luz. A fusão de dois buracos negros provocou ondulações na estrutura do Universo, que foram detectadas pelo observatório americano no segundo semestre de 2015. Se Deus, de fato, criou o Universo com a aparência de antigo, qual teria sido seu propósito ao nos iludir com esses fenômenos? Estaria mentindo para nós, realizando uma ilusão ótica, um truque de mágica? Muitos teólogos se preocupam com as implicações que essa posição pode ter para a compreensão do caráter de Deus. Nesse caso, Bíblia e ciência apontam para uma solução menos problemática: o Universo é mais antigo do que muitos cristãos imaginam.

Criação em dois momentos

Entretanto, um texto bíblico parece contradizer frontalmente a ideia da criação em dois momentos. Gênesis 1:14-19 descreve Deus criando o Sol e a Lua para governar o dia e a noite. No verso 16, a Bíblia acrescenta a informação de que Deus “fez também as estrelas”, dando a entender que elas não existiam antes do quarto dia. Essa interpretação, porém, apresenta sérios problemas. O Comentário Bíblico Adventista do Sétimo Dia, ao comentar o livro de Gênesis, ressalta que a expressão “fez também” é, na verdade, um acréscimo dos tradutores da Bíblia (p. 194). O texto original do verso 16 diz literalmente: “…e o menor para governar a noite e as estrelas”.

Num capítulo do livro He Spoke and It Was, o teólogo adventista Richard Davidson, professor de Antigo Testamento na Universidade Andrews, argumenta que “a sintaxe do verso 16 não aponta para a criação das estrelas no quarto dia. Inclusive, por não atribuir qualquer função às estrelas, como ao Sol e à Lua, elas [as estrelas] podem ser tidas como uma declaração parentética [ou seja, entre parênteses] acrescentada ao verso para completar a descrição dos corpos celestiais” (p. 53).

Num artigo na revista Andrews University Seminary Studies, número 25, Colin House concorda com essa posição e mostra que a partícula hebraica traduzida como “e também” subentende que a estrelas já existiam por ocasião do quarto dia. Sendo assim, ele propõe que a melhor tradução do texto seria: “A luz menor para governar a noite junto com as estrelas” (p. 245).

Portanto, o relato da criação apresenta a ação de Deus em dois estágios: o primeiro, criando a matéria (Gn 1:1, 2);
e o segundo, dando forma a essa matéria e trazendo à existência seres viventes (Gn 1:3-31). Richard Davidson argumenta que essa estratégia não é estranha ao Criador. Por ocasião da criação do homem, Deus usou o pó (matéria pré-criada) para dar forma a Adão e lhe soprar o fôlego de vida. Com Eva, ele usou a costela de Adão. Deus, nesses casos, é retratado como um oleiro ou arquiteto, que faz uso de material existente para modelar a obra que tem em mente.

Esse processo criativo em duas etapas é mencionado em diversos momentos nas Escrituras: a criação de um “novo coração” (Sl 51:10), de uma “nova aliança” (Jr 31:33), ou do “novo céu e nova Terra” (Is 65:17; 66:22; Ap 21-22). “Todos pressupõem algo que já existia”, afirma Davidson. Se cremos que Deus realizará uma criação escatológica envolvendo duas etapas, usando matéria já existente para criar os renovados céus e Terra, “não seria anormal Deus ter seguido a mesma estratégia em Gênesis 1 e 2” (p. 53).

No entanto, resta ainda um esclarecimento. O Sol e a Lua, também mencionados no quarto dia da criação, teriam sido criados nesse dia ou já existiam e passaram a ter a função de fazer a “separação entre o dia e a noite” e sinalizar as “estações, dias e anos” (Gn 1:14)? Essas duas interpretações são discutidas há alguns séculos, e ambas podem ser aceitas sem afetar nossa teologia criacionista.

A contagem de um período formado por parte escura (noite) e parte clara (dia) foi estabelecida por Deus no primeiro dia da semana da criação, quando o Sol não é mencionado (Gn 1:3-5). Moisés não se ateve a explicar a natureza dessa luz. Porém, em Salmo 104, um texto que também relata a criação, a luz é definida como a própria manifestação física de Deus: “coberto de luz como de um manto” (v. 2).

Esse é um maravilhoso paralelo com a posterior manifestação física da presença divina no santuário terrestre, a chamada shekiná (Êx 40:34). Da mesma forma que, durante a travessia do mar Vermelho, Deus foi luz para os hebreus e escuridão para os egípcios (Êx 14:19, 20), o Criador serviu de luz e escuridão para a contagem dos três primeiros dias. Isaías 45:7 (NTLH) acrescenta que Deus é “o Criador da luz e da escuridão”.

Portanto, duas hipóteses podem ser mantidas sobre o que ocorreu no quarto dia: o Sol e a Lua podem ter sido criados ou passaram a ter a função de luminares da noite e do dia e marcadores de tempo para a contagem das estações.

A ideia não é nova

A teoria de que a Terra poderia ter sido criada em um estado aquoso, sem forma e vazia antes da semana da criação não é totalmente nova. Segundo o Comentário Bíblico Adventista do Sétimo Dia, várias pessoas, desde os tempos do pioneiro adventista Uriah Smith, advogavam essa posição (verso 1, p. 24). Ao contrário do que alguns possam achar, não é uma posição que deriva do pensamento científico, muito menos evolucionista, mas que está fundamentada em argumentos bíblicos e de acordo com a cosmovisão adventista. Conforme ponderou John Lennox, declarado criacionista e professor de matemática da Universidade de Oxford, no livro Seven Days That Divide the World, “é logicamente possível crer nos dias de Gênesis como de 24 horas (ou uma semana terrestre) e crer que o Universo é antigo. […] Isso não tem nada que ver com ciência. Tem que ver com o que o texto está de fato nos dizendo” (p. 53).

Vale destacar o seguinte: dizer que o Universo é antigo não significa endossar as datações geológicas de milhões de anos adotadas pelos evolucionistas. Essa é outra questão que pode ser discutida em outra ocasião. Crer que as camadas geológicas e os fósseis ali contidos datam de milhões de anos enfrenta vários obstáculos na Bíblia e compromete toda a teologia adventista. No entanto, o conceito de que o Universo é muito mais antigo que a vida na Terra está em pleno acordo com as Escrituras, e nos mostra que ciência e religião, quando bem fundamentadas, podem andar de mãos dadas.

GLAUBER ARAÚJO é pastor, mestre em Ciências da Religião e editor de livros na Casa Publicadora Brasileira

(Texto publicado originalmente na edição de abril de 2016 da Revista Adventista)

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