quarta-feira, 10 de abril de 2013

Negros e africanos amaldiçoados?



A Aliança Evangélica vem a público para repudiar o uso inadequado das Escrituras Sagradas, a Bíblia, juntamente com as interpretações e afirmações daí decorrentes, especificamente as feitas quanto a supostas maldições existentes sobre africanos e negros. Afirmações dessa natureza são fruto de leitura mal feita de parágrafos bíblicos, tomados fora do seu contexto literário e teológico, que acabam por colaborar com os interesses de justificar pensamentos e práticas abusivas, contrárias ao espírito da Palavra de Deus, cujo foco está na Justiça, na Libertação e na promoção da Vida e Dignidade Humana. O texto em questão, que tem servido de pretexto para declarações insustentáveis, tanto em púlpitos, redes sociais, na tribuna do Parlamento e até protocoladas junto à Justiça Federal, sob o manto da imunidade parlamentar, versa sobre o significado da passagem bíblica encontrada no livro de Gênesis capítulo 9, versos 20 a 27.

Nessa passagem Noé, embriagado, despe-se e assim é surpreendido por seu filho Cam que, ao invés de manter a discrição e o respeito devidos ao pai, o anuncia aos seus irmãos; estes se recusam a ver o pai nesse estado e, sem olhar para ele, cobrem-no com uma manta. Desperto Noé, ao saber da postura de seu filho Cam, amaldiçoa seu neto Canaã, filho de Cam, destinando-lhe a servidão.

O equívoco em questão dá a entender que a maldição proferida pelo patriarca bíblico contra Canaã, seu neto e filho de Cam, atinge os seres humanos de tez negra que habitaram, originariamente, o continente africano, o que explicaria os vários infortúnios em sua história passada e presente, culminando no longo período em que foram feitos escravos no Ocidente; e que o ato de Cam em ver a nudez de seu pai, mais do que um desrespeito, indica um ato de violação sexual por parte de Cam.

Queremos salientar enfática e categoricamente:

1. Cam teve outros filhos: Cuxe, Mizraim e Pute, e somente Canaã foi amaldiçoado.

2. Embora o comportamento inadequado descrito no texto bíblico tenha sido o de Cam, filho de Noé, o objeto específico da maldição foi Canaã, o neto de Noé. [Segundo Orígenes, um dos pais da Igreja, do século 3, Canaã foi quem avisou seu pai sobre a situação do seu avô, publicando o que deveria ter mantido sob reserva.] Amaldiçoar, no senso bíblico, não determina a história, mas descreve a consequência da quebra de um princípio estabelecido pelo ato desrespeitoso; portanto, significa a percepção de efeitos e desdobramentos de um comportamento específico. Ou seja, a postura de Cam e de seu filho Canaã estabelece um padrão comportamental que resultaria numa situação de inversão paradoxal, em que alguns dentre os descendentes de Canaã se tornariam dominados e serviçais dos seus irmãos.

3. Canaã, neto de Noé, foi habitar e estabeleceu-se na região a oeste do rio Jordão, até a costa do Mediterrâneo (sudoeste da Mesopotâmia), onde os descendentes de Canaã desenvolveram práticas absurdas, inclusive o sacrifício de crianças, e não no continente africano!

4. É de entendimento entre os teólogos especialistas no Antigo Testamento que a maldição profética de Noé sobre Canaã foi cumprida quando da conquista da região povoada pelos descendentes de Canaã, os cananeus, por parte dos filhos de Jacó, sob o comando de Josué há mais de três milênios.

5. A maldição proferida sobre Canaã pelo seu avô Noé significou uma percepção e discernimento sobre uma tendência comportamental de um grupo humano, antevendo o resultado de uma corrupção cultural e civilizatória específica e localizada, e em consequente servidão, e de modo nenhum faz referência à cor da sua pele.

6. Não há nada, absolutamente nada, nem nesse texto bíblico em foco nem na Escritura como um todo, que indique qualquer maldição sobre negros e africanos, e muito menos algo que justifique a escravidão.

7. O texto bíblico precisa ser lido em seu contexto imediato e considerado à luz da totalidade da Escritura, como saudáveis práticas de interpretação bíblica nos ensinam. De acordo com o próprio capítulo 9 de Gênesis, verso 1 e seguintes, é indicado que o desejo de Deus e Sua promessa visam a abençoar, dar vida, alimento e todo o necessário para o desenvolvimento de todos os descendentes de Noé, seus filhos e de toda a família humana. A declaração divina de abençoar a Noé e seus descendentes é firme e abrangente, e não pode ser contestada ou reduzida pela declaração relativa e descritiva de Noé a respeito de seu neto.


8. Deus reafirma o desejo de abençoar toda a humanidade, todas as famílias da terra, raças e etnias no episódio descrito na sequência da narrativa bíblica, quando da vocação de Abrão (Gênesis 12), intenção que tem seu ápice e culminância na pessoa, vida e ministério de Jesus e continuado em curso na Igreja. Em Cristo, toda maldição é destruída e uma Nova Criação é estabelecida, sendo chamados a participar desse novo concerto todas as nações, etnias, raças, povos e famílias de todas as terras e da Terra toda, sendo revogadas assim todas as maldições e oferecida salvação a todas as pessoas.

9. A alegada violação sexual de Cam a Noé não é sustentada pelo texto. A citação do texto da lei de Moisés que chama a violação de descobrir a nudez não dá suporte a tal alegação, uma vez que os verbos usados são diferentes na raiz e no significado: no primeiro caso, trata-se de observação a distância; e, no segundo caso, trata-se de ato deliberado contra outrem.

10. Toda vez, na história, que esse texto foi aventado a partir dessa hipótese vulgar, tratou-se de ato de má fé a serviço de interesses escusos, seja quando usado para justificar a escravidão de ameríndios no Brasil colonial, seja quando usado para justificar a escravidão dos africanos de tez negra, seja quando utilizado para a elaboração de sistemas legais de segregação social como o que ocorreu nos Estados Unidos, seja quando usado para justificar a política nefasta e mundialmente condenada do “apartheid”.



Tal leitura equivocada da Escritura corre o risco de ser vista como suspeita de esconder outros interesses de natureza política, econômica e de dominação social e religiosa. Não há nenhum apoio bíblico para defender qualquer maldição sobre negros ou africanos, que fazem parte, igualmente e em conjunto, da única família humana.

Lamentamos o equívoco provocado por tal vulgarização do texto bíblico, bem como a banalização quanto ao conteúdo de nossa fé, assim como repudiamos qualquer tentativa, intencional ou não, de uso inadequado do texto para quaisquer fins que não o de promover a vida, a libertação e a justiça, como a própria Escritura expressa muito bem.

(Ultimato)


1 comentários:

Marco disse...

O manifesto da Aliança Evangélica, infelizmente, oferece frestas onde se acoitar o Tinhoso - por exemplo, a expressão "sob o manto da imunidade parlamentar".

Ou seja, não fosse deputado, Feliciano deveria ir em cana, segundo a interpretação piedosa do direito de livre expressão da tal Aliança. Mas como pau que bate em Chico, expõe os miolos arrebentados de Francisco...

Feliciano, de fato, rebaixa a teologia mas - vejam que coisa! - enriquece a democracia. Dizendo aquele tipo de besteira? Óbvio que sim! Liberdade de expressão se consolida ao aceitarmos ouvir aquilo que abominamos. Ao se satanizar uma visão teológica particular, abre-se, literalmente, as portas do inferno. Em seu zelo politicamente correto, a Aliança parece fazer de conta que não percebe que, como Nero, despacharia São Paulo ao cadafalso, caso este vivesse nos dias de hoje.

Bertolucci dizia que o fascismo começa caçando tarados. Perceba-se: o alvo do fascismo está elíptico na tirada do cineasta; esse alvo é você, sou eu, é até o próprio pessoal da Aliança, que não entende estar oferecendo o pescoço ao carrasco. Mas mesmo a frase de Bertolucci tornou-se anacrônica. Hoje, os fascistas se aliaram aos tarados para impor sua guilhotina. Talvez estejam surpresos de contar com a adesão daqueles que Stalin chamava de idiotas úteis - colaboracionistas por fim premiados com uma bala na mufla.

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